No Hospital de Câncer de Pernambuco, o serviço de Cuidados Paliativos vem sendo conduzido de maneira cuidadosa e inovadora por Conceição Hander de Lucena, que nessa entrevista conta um pouco de sua experiência à frente do departamento. Hander é também professora da Universidade Federal de Pernambuco, especialista em Suporte Avançado à vida – UTI e Emergência, entre outras atividades.
Como teve início o serviço de Cuidados Paliativos no Hospital de Câncer de Pernambuco?
O Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital de Câncer de Pernambuco (HCP) teve início em 2010, sob o desejo e ideal do médico Fábio Costa Malta, coordenador e fundador da equipe em 2010. Ele queria montar uma equipe específica para trabalhar esses cuidados e foram convidados profissionais de várias áreas para integrar o grupo: assistente social, psicóloga, nutricionista e enfermeira. Eu tinha acabado de me formar e meu primeiro dia de trabalho foi na reunião da equipe de Cuidados Paliativos. Em reunião, logo se pensou no nome da equipe: Saber Cuidar.
Quais foram os principais obstáculos para se implementar o serviço no hospital e como vocês conseguiram contorná-los?
Na minha opinião, um dos mais difíceis obstáculos foi o de desconstruir o estigma que a enfermaria tinha de “Corredor da Morte”. Era um longo corredor e pouco iluminado. Os acompanhantes, em sua maioria, ficavam na porta das enfermarias, preocupados e chorando, com medo e receio do que estava por vir.
Sob orientação do coordenador, encaramos esse grande desafio. A princípio foram realizadas capacitações para enfermeiros e técnicos sobre Cuidados Paliativos, para explicar o significado desse conceito, educando sobre controle de sintomas para alívio do sofrimento e, sobretudo, alívio da dor. Também começamos a realizar palestras mensais para os acompanhantes, cuidadores e familiares dos pacientes. Depois, seguiram o Simpósio de Cuidados Paliativos e participação em eventos científicos.
O dr. Fábio Malta também criou o ambulatório da Dor, onde ele acompanhava os pacientes. A equipe foi aumentando e já contávamos com outros profissionais: fisioterapeutas, fonoaudiólogos, dentista, voluntários e colaboradores.
No entanto, em 2012, depois de ser aprovada no concurso para professora substituta da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), tive que me ausentar dos Cuidados Paliativos. Comecei a trabalhar na UFPE e na UTI do HCP nos plantões noturnos.
A Equipe Saber Cuidar continuou com seu trabalho, mas aos poucos, os profissionais também precisaram ir para outros serviços, inclusive o coordenador da equipe, que foi convidado a assumir a diretoria técnica do HCP.
Em dezembro de 2013 fui convidada a assumir a coordenação da equipe de Cuidados Paliativos. Minha primeira pergunta foi: “Quando começo?”, já que ainda estava dando aulas. O dr. Fábio me respondeu: “Ontem. E você vai encontrar um serviço que praticamente precisa ser reconstruído”. Era sexta-feira. Eu começaria na segunda-feira seguinte.
Aceitei o convite e comecei meu trabalho, fazendo um diagnóstico situacional da enfermaria: estrutural, física, emocional da equipe e do perfil dos pacientes. Retomamos os trabalhos da equipe e as reuniões semanais foram retomadas.
Embora soubesse que não seria fácil, em nenhum momento tive medo, pois nunca deixei de fazer, estudar e aplicar os Cuidados Paliativos na minha vida profissional.
Ao contrário do que acontece em outros locais, no HCP é uma enfermeira que está à frente do serviço, ao invés de um médico. O que isso diz sobre a importância da atuação multidisciplinar nos Cuidados Paliativos?
Sem dúvida alguma, o médico é o profissional mais esperado pelo paciente, em especial pacientes que sentem muita dor, angústia e sofrimento.
Como enfermeira, tenho consciência de que muitos dilemas éticos relacionados à atenção ao paciente sob Cuidados Paliativos estão vinculados à esfera do gerenciamento em enfermagem. A ética ajuda o enfermeiro a refletir, fundamentado em princípios que nortearão as condutas e as tomadas de decisões. O enfermeiro detém o conhecimento sobre todos os pacientes, diagnósticos, anseios, angústias do paciente e familiares, está mais perto, por mais tempo. Então penso que por todos esses motivos, o enfermeiro pode exercer a função de coordenar a equipe.
Ressaltando sempre, é claro, que a importância de cada profissional na equipe é singular. De uma forma transdisciplinar, os papeis acabam se tornando interdependentes e essa função passa a poder ser desenvolvida por todos da equipe.
Como funciona o serviço?
No HCP temos uma enfermaria com 14 quartos, com 33 leitos masculinos e femininos. Dez desses quartos são coletivos e quatro individuais.
Com o apoio dos superintendentes conseguimos o apoio para a construção de uma sala de convivência para os pacientes e seus familiares. Fizemos uma votação e os próprios pacientes e familiares escolheram o nome para o local: “Sala da Harmonia”. Nela podem ficar os pacientes que ainda podem se locomover, juntamente com seus familiares, para algumas atividades, tais como assistir televisão, vídeos e navegar na Internet.
Nessa Sala, acontecem as reuniões da equipe de Cuidados Paliativos, bem como terapias e artes com os acompanhantes, além de reuniões e palestras com profissionais e familiares sobre Cuidados Paliativos.
Nosso serviço de Cuidados Paliativos atende pacientes encaminhados por formulário próprio das clínicas cirúrgicas, oncológicas, ambulatórios, emergências, hematologia e unidade de terapia intensiva. Nessa estrutura, são atendidos cerca de 70 pacientes internados por mês, com uma média de permanência de 12 dias, mas que pode chegar a meses e até a anos.
Quando começou em janeiro de 2010, a Equipe de Cuidados Paliativos – Saber Cuidar era composta por médico, enfermeira, assistente social, nutricionista e psicóloga. Hoje nossa equipe tem sete médicos, uma enfermeira coordenadora (dedicação exclusiva), uma psicóloga, uma assistente social, uma nutricionista, duas fonoaudiólogas, duas fisioterapeutas, um dentista, além de profissionais de apoio como clínicos, enfermeiras diaristas e plantonistas, técnicos de enfermagem e voluntários.
Conte um pouco da sua trajetória pessoal e por que você resolveu trabalhar com Cuidados Paliativos.
Costumo dizer que não escolhi os Cuidados Paliativos e nem o Hospital de Câncer, mas que eles me escolheram. No segundo semestre de 2009, no meu quinto ano do curso de enfermagem, os estágios eram determinados por sorteios. No dia do sorteio da turma da manhã precisei faltar e a caminho do sorteio da turma da tarde, encontrei uma professora que trabalhava no Hospital de Câncer que me convidou para estagiar.
No meu primeiro dia no HCP a professora tentou me preparar para o que eu ia ver por lá. Lembro-me como se fosse hoje: era um corredor escuro, com os acompanhantes nas portas das enfermarias, alguns com o choro e o medo estampados no rosto. Saí naquele dia, sem querer mais voltar. Mas voltei e sempre agradecia a Deus por estar viva e por poder fazer algo por aqueles pacientes. Passaram-se os meses e no HCP vivi momentos de muito aprendizado e envolvimento com os Cuidados Paliativos. Conheci profissionais que me marcaram pela forma respeitosa com que tratavam, ouviam e falavam com os pacientes.
Concluí meu estágio e me formei em dezembro de 2009. Em janeiro de 2010, na semana do meu aniversário, fui contatada para um teste para uma vaga de enfermeira do HCP. Meu primeiro dia de trabalho foi como enfermeira da Equipe de Cuidados Paliativos – Equipe Saber Cuidar. Desde então, tento dar minha contribuição à equipe multiprofissional, aos pacientes, aos familiares e aos profissionais que trabalham nos Cuidados Paliativos.
Tem algum caso marcante que gostaria de contar?
Na verdade, são muitos casos marcantes todos os dias. Digo que trabalhar em Cuidados Paliativos é fazer um trabalho diferente a cada dia. E aquele paciente sobre o qual achamos que sabemos tudo, ele sempre vai dizer algo ou fazer algo que não fez antes.
Um caso marcante aconteceu esse ano, com um paciente chamado Israel. Ele tinha um tumor de pênis avançado e passava por sessões de hemodiálise três vezes por semana. Quando chegou em nosso serviço, o sr. Israel já estava com doença avançada, distúrbio de coagulação e muito sangramento pelo tumor. O tratamento foi conduzido por toda a equipe, até que chegou o momento, discutido em equipe, em que chegou à conclusão de que o sr. Israel não se beneficiaria mais das hemodiálises.
Chamei os familiares para uma conversa, convidei a médica, a psicóloga e assistente social. No dia da reunião, nem a médica nem a psicóloga puderam comparecer, então eu e a assistente social conduzimos a conversa. Expliquei de maneira cuidadosa a tomada de decisão, adiantei os sintomas que poderiam acontecer e informei como iríamos trabalhar seu controle e alívio. A comunicação durou uma hora.
Depois de a família estar mais tranquilizada, fomos visitar o sr. Israel no quarto. Quando entramos na enfermaria, lá estava o sr. Israel tocando sua gaita, tranquilo, com lágrimas nos olhos, mas sereno. Ele nos disse que ali “tinha vivido dias de Rei”. Dois dias depois o sr. Israel faleceu dormindo, e tranquilo.
Hoje só tenho a agradecer a oportunidade e pelos Cuidados Paliativos terem me escolhido através de pessoas escolhidas também. Agradeço também por fazer parte de uma equipe com tanta sincronia, respeito, transdisciplinaridade, e sobretudo, muito amor.
Com informações da ANCP